IMPORTÂNCIA DO LEITE LONGA VIDA

PARA O DESENVOLVIMENTO DO

MERCADO BRASILEIRO DE LEITE

 

 

 

ã Almir José Meireles (1)

Daniela Rodrigues Alves (2)

 

Dez anos após seu lançamento na Europa, o leite longa vida ou ultrapasteurizado chegava ao mercado brasileiro de leite fluido de consumo, especificamente no Rio de Janeiro. A utilização da nova tecnologia de ultrapasteurização (processo UHT – Ultra High Temperature) por empresas brasileiras, a partir de 1972, se fez num tempo relativamente curto se comparado ao que levou o leite pasteurizado para fazer o mesmo percurso, no início do Século XX.

O mercado brasileiro de leite fluido, no momento em que o leite longa vida foi introduzido, era constituído majoritariamente pelo leite pasteurizado do tipo C. Havia uma pequena oferta de leite pasteurizado tipo B e uma ainda menor de leite pasteurizado tipo A. O leite esterilizado, também comercializado em poucos países, tinha no Brasil uma presença insignificante e regionalizada.

O leite pasteurizado, independentemente do tipo, é o resultado do processo de tratamento térmico denominado pasteurização (HTST – High Temperature Short Time), que consiste em elevar a temperatura do leite cru de 72o a 75o C, por 15 a 20 segundos, resfriando-o imediatamente a 5o C. Após esse processo, o leite pasteurizado é embalado. A pasteurização garante a eliminação dos microorganismos patogênicos do leite, mas nele ainda permanecem ativos alguns microorganismos capazes de deteriorá-lo. Para impedir a ação de tais microorganismos é que o leite pasteurizado necessita de uma perfeita cadeia de frio até a mesa do consumidor. Devido à baixa qualidade do leite cru e à deficiente cadeia de frio, o Governo Federal fixou em apenas um dia o prazo de validade para o leite pasteurizado brasileiro, o que perdurou até os anos 90, quando cada empresa passou a defini-lo.

De 1968 a meados dos anos 70, a embalagem do leite pasteurizado tipo C mudou da garrafa de vidro para o saquinho plástico, sendo que o leite pasteurizado tipo B podia ser encontrado também em embalagem cartonada, ambas descartáveis. O saquinho plástico facilitou a vida do consumidor que não necessitava mais levar obrigatoriamente o vasilhame para a compra do leite pasteurizado, mas em compensação empobrecera a apresentação do produto.

O processo de esterilização consiste em um pré-aquecimento do leite a 70o C e esterilização na própria embalagem à temperatura de 109 a 120o C, durante 20 a 40 minutos, seguida de rápido resfriamento a cerca de 30o C. Além do grande consumo de energia que encarece o processo e o produto final, a esterilização causa significativa deterioração na qualidade nutritiva do leite e sensível alteração em seu sabor. Normalmente embalado em garrafa de vidro ou de plástico, o leite esterilizado, mesmo com prazo de validade bem maior do que o do leite pasteurizado, nunca conquistou um grande número de consumidores.

A ultrapasteurização (UHT) apresenta vantagens tecnológicas em relação ao processo de pasteurização e esterilização, porque amplia o prazo de validade do produto, também sem necessidade de refrigeração, mas sem significativas alterações nas características essenciais do leite ou de sabor. O processo de ultrapasteurização, utilizado na produção de leite longa vida, consiste basicamente no seu tratamento a uma temperatura de 130Ί a 150o C, por 2 a 4 segundos, após o que o produto é resfriado a um temperatura inferior a 32o C e envasado em embalagem cartonada asséptica. Devido a inexistência de legislação específica para o processo UHT (ultrapasteurização), o leite longa vida em embalagem cartonada recebeu inicialmente a denominação comercial "esterilizado", e tal como o leite esterilizado em garrafa, não conseguiu conquistar os consumidores.

Nos anos 70, vários fatores prejudicaram o crescimento das vendas de leite longa vida e o aumento de sua participação no mercado total de leite fluido. Primeiro, a baixa capacidade instalada, uma vez que poucas empresas investiram em leite longa vida. Das que produziam, a maioria tinha mais interesse em manter o mercado de leite pasteurizado, regionalizado e cartelizado, do que oferecer novas alternativas aos consumidores, pois junto com elas poderiam atrair novos competidores. Em razão disso posicionavam o leite longa vida com um preço bem mais elevado do que os praticados para o leite pasteurizado. Tampouco foram feitos grandes investimentos em marketing para informar os consumidores sobre as características do novo produto ou para torná-lo amplamente conhecido.

O leite longa vida enfrentou duas outras barreiras importantes. O principal canal de venda do leite fluido era a padaria. Tal como as empresas de laticínios, as padarias impunham elevadas margens ao leite longa vida, que assim só era adquirido pelo consumidor no caso de falta do leite pasteurizado. Para piorar ainda mais a competitividade do leite do leite longa vida, em 1983, passou a incidir sobre o produto, o ICM – Imposto Sobre Circulação de Mercadorias, que atingia 17% do preço final. Todavia, com exceção de Minas Gerais, nos principais estados consumidores o leite pasteurizado permaneceu isento ou com tratamento tributário favorecido.

Em face de tantos entraves, no período de 1972 a 1980, enquanto as vendas de leite fluido no mercado brasileiro cresceram de 1,2 bilhões de litros para 2,9 bilhões, as de leite longa vida passaram de 1 milhão de litros para 103 milhões de litros. Em 1980, a participação do leite longa vida era de apenas 3,6% do mercado total de leite fluido (Quadro I).

Quadro I

Brasil – Mercado Total de Leite Fluido e Vendas de Leite Longa Vida

1972/80

Nos dez anos seguintes, de 1980 a 1990, as vendas de leite longa vida tiveram um crescimento insignificante, alcançando apenas 187 milhões de litros nesse último ano, quando o produto atingiu inexpressivos 4,4% do mercado total de leite fluido. Em cinco anos daquele período, de 1983 a 1987, as vendas de leite longa vida ficaram praticamente estagnadas (Quadro II).

Quadro II

Brasil – Mercado Total de Leite Fluido e Vendas de Leite Longa Vida

1980/90

Apesar de tantos fatores conspirando contra o crescimento das vendas de leite longa vida e do seu baixo desempenho, o volume de leite pasteurizado não aumentou, mesmo considerando que no período de 1986 a 1990, o Governo Federal se tornou um grande comprador desse produto, através do programa do tíquete do leite.

Assim, no período de 1983 a 1990, quando o leite longa vida não representou qualquer ameaça no mercado de leite fluido, o leite pasteurizado não conseguiu ultrapassar o volume de 4,1 bilhões de litros, pois foi exatamente o que vendeu nos dois anos mencionados (Quadro III).

 

Brasil – Mercado Total de Leite Fluido, Vendas de Leite Pasteurizado e Programa Tíquete do Leite - 1983/90

Quadro III

 

Constata-se, portanto, que antes dos anos de expressivo crescimento das vendas de leite longa vida, o mercado de leite fluido brasileiro permaneceu estagnado (Quadro IV). Se o mau desempenho do leite pasteurizado nesses oito anos não pode ser explicado pela substituição desse leite pelo longa vida, então como entender tal comportamento ?

Dada a escassez de informações daquele período, a explicação mais plausível é que o leite pasteurizado ainda tinha um preço alto para o orçamento do brasileiro. Tomar leite pasteurizado não era uma prática acessível a uma grande parcela da população, mesmo com o tabelamento de preços e margens. Outra conjectura a respeito do desempenho do leite pasteurizado é que o leite cru vendido clandestinamente, com seus baixos preços, acabou impedindo o crescimento das vendas do produto tratado e fiscalizado.

 

Brasil – Mercado Total de Leite Fluido, Vendas de Leite Pasteurizado e Vendas de Leite Longa Vida - 1983/90

Quadro IV

Num país em que expressivas taxas anuais de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) são seguidas de taxas anuais negativas, não é possível para a maior parte das diferentes classes sociais atingir níveis satisfatórios de consumo. Com o aumento continuado da população, é natural que esta não consiga manter seu padrão de consumo, quanto mais melhorá-lo quantitativa ou qualitativamente. Porém, isso não justifica os erros cometidos pelo próprio segmento de leite pasteurizado na definição de suas estratégias de crescimento ou na orientação de suas operações.

As razões para explicar o declínio persistente das vendas de leite pasteurizado, no período de 1992 a 1999, quando se verificou o maior crescimento das vendas de leite longa vida, são muitas. Lamentavelmente, não foram objeto de reflexão das empresas que atuavam no mercado de leite fluido, que preferiram atribuir seu fracasso crescente nesse mercado ao desempenho do produto concorrente.

Diariamente, o consumidor de leite pasteurizado era obrigado a ir à padaria ou ao pequeno varejo para adquirir seu leite, ainda que aproveitasse a viagem para a compra de pão e outras utilidades. Isso decorria do fato da validade do leite pasteurizado se limitar a um único dia, o que era uma imposição legal mas, de toda maneira, calcada na má qualidade microbiológica do produto. Além disso, o transporte da usina até o varejo em caminhões sem refrigeração e a falta de refrigeração adequada no ponto de venda, ratificavam a necessidade da validade ser tão limitada.

As empresas distribuidoras de leite pasteurizado, que no passado detinham um produto extremamente escasso em determinados períodos do ano, principalmente nas grandes metrópoles, não perceberam que as exigências da vida moderna tornaram a ida diária à padaria um sério problema para o consumidor. Também não perceberam que o leite havia deixado de ser um produto escasso (as importações foram liberadas em 1991) e que, ao contrário, outras empresas passaram a oferecer novas alternativas mais atraentes ao consumidor, em outros canais de vendas. Além desses fatores, todos os tipos de leite pasteurizado eram disponíveis apenas com teor de gordura de 3% ou mais, sendo a maioria em saquinho plástico de difícil manuseio. Embora ficasse extremamente insatisfeito, o consumidor não se espantava com a frequente deterioração do produto em sua residência, principalmente nas épocas do ano ou regiões de temperaturas mais elevadas.

Em resumo, as empresas tradicionais distribuidoras de leite pasteurizado não perceberam as transformações que estavam ocorrendo no comportamento de compra do consumidor, nem tampouco atentaram aos motivos de sua insatisfação. Preocupações com a nutrição e a saúde, bem como a economia de tempo e a conveniência passaram a orientar a compra de alimentos. Nesse sentido, é que algumas empresas começaram a ofertar leite longa vida com diferentes teores de gordura, enriquecidos com vitaminas, minerais e outros nutrientes benéficos à saúde, além de produtos com sabor, prontos para o consumo. Rapidamente aceitos, tais produtos vieram a suprir necessidades específicas de muitos consumidores, ganhando sua preferência.

Simultaneamente à maior diversificação da oferta de leite longa vida, um novo canal de vendas passava a apresentar um crescimento cada vez mais exuberante: os supermercados. O leite longa vida se encaixava tanto ao novo perfil do consumidor quanto às exigências do supermercados, para quem o leite pasteurizado era um problema. Além de ocupar espaço valioso nos refrigeradores e propiciar baixa lucratividade, o leite pasteurizado tinha um prazo de validade inadequado e não atraía os consumidores. Estes eram obrigados a comprá-lo diariamente, o que fazia da padaria mais próxima a melhor alternativa.

A despeito do crescimento dos supermercados e da mudança na preferência dos consumidores que, gradativamente, passavam a reconhecer as vantagens do leite longa vida, as padarias não mudaram sua política comercial. Continuaram a aplicar margens maiores ao leite longa vida, ofertando-o a preços mais elevados que os do leite pasteurizado. Como resultado, as padarias perderam ao mesmo tempo os consumidores das duas categorias de leite: os de leite pasteurizado, porque não desejavam mais o produto, e os de leite longa vida, porque não tinham preço competitivo. Ou seja, as padarias empurraram os consumidores de leite fluido para os supermercados.

Para coroar as transformações que estavam ocorrendo no mercado de leite fluido, muitas empresas que tradicionalmente não operavam com leite pasteurizado, pois a venda normalmente era regionalizada, passaram a investir em leite longa vida, aumentando rapidamente sua oferta. Os investimentos na linha de leite longa vida eram viáveis, mesmo para empresas cujas fábricas se localizassem à longa distância dos mercados consumidores. O novo leite fluido não necessitava de cadeia de frio na distribuição e tinha um prazo de validade de vários meses, além da embalagem permitir um ótimo aproveitamento no transporte.

Nas regiões metropolitanas, com maior intensidade do que em outras áreas, os supermercados se favoreceram do aumento da oferta e conseguiram reduzir ainda mais os preços do leite longa vida ao consumidor. Protegidas pelas reservas regionais de mercado, as empresas e padarias mantinham estáveis os preços do leite pasteurizado, porquanto cartelizados. Entretanto, não foi possível manter os consumidores, não só pelos motivos já expostos mas, principalmente, porque nos supermercados, na maior parte do ano, o leite longa vida custava mais barato do que o leite pasteurizado vendido nas padarias. A migração dos consumidores para os supermercados, vivenciada diariamente, não alterou a política de preços das padarias.

Qualquer categoria de produto não iria resistir a tantos erros estratégicos cometidos simultaneamente, quando havia surgido um produto substituto com vantagens amplamente reconhecidas pelos consumidores. Ao aproveitar as oportunidades geradas pelo descontentamento do consumidor tanto com relação ao preço do leite pasteurizado, quanto com sua qualidade variável, maior frequência de compra e dificuldade de manuseio da embalagem, as empresas de leite longa vida conseguiram expressivas taxas de crescimento de vendas no período de 1991 a 2000. A participação do leite longa vida no mercado total de leite fluido subiu de 4,4%, em 1990 para 68,8%, em 2000 (Quadro V).

Quadro V

Brasil – Mercado Total de Leite Fluido e Vendas de Leite Longa Vida

1991/2000

 

Com o crescimento das vendas de leite longa vida, a partir de 1994, o mercado total de leite fluido voltou a crescer de forma persistente até o ano 2000. Nesse período, ocorreram as maiores transformações na história do setor de pecuária leiteira e de laticínios, sendo as verificadas no mercado de leite fluido talvez as mais profundas. Além dos investimentos maciços feitos em capacidade instalada para a produção de leite longa vida, algumas mudanças no cenário macroeconômico e institucional favoreceram as vendas do produto, permitindo que fossem registradas impressionantes taxas anuais de crescimento.

Com o Plano Real, em 1994 houve um aumento na renda dos consumidores; os preços se estabilizaram, declinando em termos reais em alguns casos; os principais Estados consumidores de leite fluido da federação incluiriam o leite longa vida na Cesta Básica (tributária), o que reduziu em pelo menos 10 pontos percentuais a alíquota de ICMS incidente sobre o produto; os supermercados, grandes vendedores de leite longa vida, se fortaleceram ainda mais através de processos de compras e fusões; maiores investimentos foram feitos em marketing de leite longa vida, ainda que por um pequeno número de empresas.

Merece também destaque, dentre as transformações dos anos 90, a nova legislação sanitária que, em maio de 1996, alterou a designação comercial do leite longa vida de "esterilizado" para "UHT", contribuindo para melhorar a imagem do produto. Com a mudança de nomenclatura, ficou ainda mais claro para o consumidor que o leite longa vida e o leite esterilizado são produtos completamente diferentes, apesar de ambos não necessitarem de refrigeração no transporte e estocagem.

O fato é que, com mais intensidade a partir de 1994, enquanto as vendas de leite longa vida cresceram, as vendas de leite pasteurizado caíram vertiginosamente. Uma análise superficial das estatísticas de venda de leite fluido poderia levar a conclusão equivocada de que a o declínio do leite pasteurizado e o insucesso das empresas produtoras, dos distribuidores e padarias, eram causados pelo leite longa vida. Todavia, uma análise aprofundada das mesmas estatísticas mostram, claramente, que o aumento das vendas de leite longa vida foi superior à perda das vendas do leite pasteurizado.

Numa simulação com as mesmas estatísticas, devolvendo-se ao leite pasteurizado o volume teoricamente perdido para o leite longa vida, a condição de declínio das vendas de leite pasteurizado na década de 90 permanece. Com exceção dos anos de 1994 e 1995, em que ambos os produtos apresentam crescimento de vendas; e, de 1996, em que a recuperação das perdas (do pasteurizado para o longa vida) manteria estáveis as vendas de leite pasteurizado, nos demais anos, o leite pasteurizado continuaria a declinar, enquanto o longa vida continuaria a crescer. O resultado é que de 1991 a 2000, as vendas de leite pasteurizado se reduziriam em 2 bilhões de litros (Quadro VI).

Brasil – Vendas de Leite Longa Vida e Leite Pasteurizado, com Simulação de Recuperação das Vendas pelo Leite Pasteurizado - 1991/2000

Quadro VI

Com o mau desempenho do leite pasteurizado, o crescimento do mercado total de leite fluido passou a depender cada vez mais do aumento de vendas do leite longa vida. Basta observar que, deduzindo-se das vendas de leite longa vida os volumes teoricamente conquistados do leite pasteurizado e, somando-se a este tais perdas, todo crescimento do mercado total de leite fluido ocorreu exclusivamente em razão do crescimento das vendas (mesmo ajustadas para menos) de leite longa vida (Quadro VII).

Quadro VII

Brasil – Importância das Vendas de Leite Longa Vida no Mercado Total de

Leite Fuido, com Simulação de Recuperação das Vendas pelo Leite Pasteurizado - 1991/2000

 

É inquestionável, portanto, a importância que o leite longa vida teve na ampliação do mercado de leite fluido brasileiro. Esta conclusão, sustentada pelas estatísticas referentes a este mercado, difere das afirmações frequente e insistentemente feitas contra o leite longa vida. Embora o crescimento das vendas de leite longa vida explique o crescimento do mercado de leite fluido no Brasil, a queda vertiginosa das vendas de leite pasteurizado, no mesmo período, não pode ser atribuída à substituição desse produto pelo leite longa vida.

Se as vendas de leite pasteurizado não teriam condições de crescer, ainda que fossem recuperados os volumes conquistados pelo leite longa vida, como o leite pasteurizado poderia dar vazão ao grande crescimento da produção de leite verificado nos anos 90 ? Por que continuar sustentando que o leite pasteurizado seria a melhor opção para remunerar empresas e produtores ? Não teria sido o leite longa vida um incentivo ao crescimento da produção de leite e ao desenvolvimento da indústria de laticínios, nos estados exportadores em que este crescimento ocorreu ?

Na verdade, as cooperativas e demais empresas localizadas nos principais estados importadores de leite cru e produtos lácteos, como São Paulo e Rio de Janeiro, e que tinham no leite pasteurizado seu principal produto, não perceberam que o modelo de mercado vigente durante o período de tabelamento, ou seja, que vigorou até 1991, se tornaria insustentável, levando-se em conta a dinâmica do mercado.

Destinando-se a produção de leite ao empacotamento do pasteurizado, de fato era possível manter uma remuneração maior ao produtor do que destinando o mesmo volume a qualquer outro produto. A manutenção de preços mais elevados para o leite pasteurizado resultava em alta lucratividade para o produto. Isso era possível através do controle da oferta do leite pasteurizado, dos baixos custos do processo, mas da permanência do indesejável saquinho plástico. Todavia, ao insistir nesse modelo, as empresas viram suas vendas declinarem, tendo o leite pasteurizado perdido sua condição de produto de consumo de massa.

Para melhorar a qualidade do leite pasteurizado e manter o produtor de leite melhor remunerado, seria necessário um aumento do preço final desse produto, o que causaria novas reduções no tamanho de seu mercado consumidor. Entretanto, no interior dos diferentes estados fora das Regiões Norte e Nordeste, onde o leite pasteurizado tinha oferta abundante e participação relevante, a estratégia de posicionar o produto com preços sempre inferiores ao leite longa vida também fracassou. Da mesma maneira que ocorreu nas regiões metropolitanas, o leite longa vida aumentou cada vez mais sua participação nos mercados de leite fluido, mesmo nas cidades menores.

Alguns produtores com maior escala de produção de leite, não confiando na eficiência das vendas e distribuição das usinas compradoras de sua matéria-prima, lançaram-se no mercado de leite pasteurizado tipo A, com embalagens especiais – cartonada ou garrafa plástica, para aumentar ainda mais a remuneração do produto primário. Ficaram surpresos quando se depararam com um mercado consumidor ainda mais elitizado e, portanto, menor. Os preços, que na opinião desses produtores os remuneraria adequadamente, acabaram por restringir o mercado, mais do que o esperado. A consequência é que tais produtores são obrigados a vender os excedentes não absorvidos pela linha de leite pasteurizado às antigas usinas compradoras, por preços ainda menores.

O leite pasteurizado não teria condições de dar vazão ao grande crescimento da produção de leite verificada nos anos 90, com a manutenção do modelo de comercialização adotado antes de 1991. A desagradável verdade estatística é que o leite pasteurizado só poderia continuar remunerando melhor, um número cada vez menor de produtores. Tudo isso ocorria justamente num período em que, além da produção de leite ser crescente, as importações de produtos lácteos eram elevadas. Como consequência, a oferta era cada vez mais abundante para um consumo de leite fluido per capita praticamente estagnado, apesar de muito aquém do consumo per capita dos países desenvolvidos e do expressivo crescimento das vendas de leite longa vida (Quadro VIII).

Quadro VIII

Brasil – Produção, Importações e Volume de Leite Disponível,

Disponibilidade per capita e Consumo de Leite Fluido per capita - 1990/2000

 

 

Para piorar a situação, no período de 1991 a 1999, a produção interna de leite cresceu muito nos principais estados exportadores, a um custo unitário menor, permanecendo estagnada nos principais estados importadores, como São Paulo e Rio de Janeiro (Quadro IX), mesmo com seus produtores sendo melhor remunerados. Além disso, as importações de produtos lácteos que causavam a baixa generalizada nos preços internos desses produtos passaram a ser dominadas por empresas sem unidades industriais para processamento de leite e sem relação com produtores. Como consequência disso, a política de preços para o leite pasteurizado se tornou ainda mais inadequada.

 

Quadro IX

Brasil – Produção de Leite nos Principais Estados Exportadores e Importadores – 1991/99

 

Ao longo dos anos 90, os principais estados exportadores de leite - Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e Rondônia – tiveram um incremento expressivo da produção. O volume ofertado tornou-se muito maior do que o aumento da demanda local, apesar do crescimento da população. Os produtores de leite de tais estados sempre tiveram que produzir a custos menores do que aqueles dos produtores dos estados compradores. Isso só foi possível porque adotaram um sistema de produção mais barato do que os adotados pelos produtores dos estados importadores, além de contarem, em muitos casos, com apoio do governo estadual. De outra forma, não seriam competitivos e nem suportariam os custos de transporte até os estados importadores.

De 1991 a 1999, o aumento da produção de leite dos sete principais estados exportadores de leite cru resfriado e produtos lácteos foi da ordem de 4 bilhões de litros de leite. Certamente nesses estados tornou-se mais atrativo produzir leite comparativamente a outras atividades agropecuárias, até em razão dos incentivos governamentais.

O fato é que os estados exportadores passaram a dispor de mais leite cru resfriado do que os mercados dos estados importadores seriam capazes de absorver regularmente, sem reduzir significativamente os preços dos produtos acabados. As empresas de laticínios localizadas nos estados importadores imaginaram que uma forma de proteger tais preços, era limitar as compras dos estados exportadores.

Para dar vazão a excedentes tão elevados, os estados exportadores tiveram que buscar outras alternativas. A primeira era investir numa usina de leite pasteurizado próxima dos principais mercados consumidores desse produto, continuando a exportar matéria-prima para sua própria planta, mas sem valor agregado. Normalmente mais distantes, o custo do transporte do produto acabado para tais mercados em caminhões refrigerados, não era economicamente viável. Porém, a grande barreira de entrada era a inexistência de um sistema de distribuição nesses mercados.

A segunda alternativa, era passar a exportar outros produtos lácteos. Nesse caso, para absorver elevados volumes só existiriam três produtos: leite em pó, queijo ou leite longa vida. O leite em pó, além de não ser um produto popular nas regiões de maior consumo de leite fluido, exigiria investimentos extremamente elevados para uma escala economicamente adequada. Investir em uma fábrica de leite em pó era inacessível para maioria das empresas. No caso do queijo, uma vez que a informalidade e sonegação existentes nesse mercado já afastavam os fabricantes tradicionais, seria improvável que esse segmento atraísse novos investidores.

A melhor saída, sem dúvida, foi investir em leite longa vida, não só pela possibilidade de se iniciar com uma pequena escala, como pela flexibilidade na comercialização do produto. Além disso, os supermercados estavam ávidos para comprar volumes cada vez maiores de leite longa vida, sendo a oferta limitada pelas empresas tradicionais envasadoras de leite pasteurizado, pelas razões anteriormente expostas.

Na medida em que os produtores de leite dos estados exportadores sentiram que o leite longa vida poderia absorver cada vez mais leite, sendo a melhor alternativa à exportação de leite cru resfriado, a produção de leite continuou a crescer, aumentando os mencionados 4 bilhões de litros, em oito anos. A indústria investiu fortemente no produto, sendo que várias empresas, que tradicionalmente atuavam no mercado de leite em pó e queijos, tornaram-se importantes fornecedoras de leite longa vida. A redução dos programas governamentais que utilizavam leite em pó e o domínio do leite em pó importado naqueles que permaneceram, foram outros fatores que levaram as empresas a produzirem mais leite longa vida.

O mercado brasileiro de leite se tornou muito mais volátil, porém não em função do leite longa vida, produto que também tem sido vítima dessa volatilidade. Seja pelo aumento da produção, seja pelo aumento das importações, as quantidades ofertadas de produtos lácteos, em vários oportunidades, superam as quantidades procuradas, criando problemas em todos os segmentos. É falsa a idéia de que as empresas de laticínios se aproveitam da condição oligopsônica para reduzir arbitrariamente os preços dos produtores, embora normalmente, em cada região, seja pequeno o número de compradores de leite. O problema é que as empresas de leite não são um oligopólio quando vendem, mas, ao contrário, enfrentam um oligopsônio fortíssimo.

Tomando-se por base os dados da "Revista Exame – Melhores e Maiores", de julho de 2001, observa-se que no ano de 2000, as doze maiores empresas que têm pelo menos parte de seus negócios na área de laticínios - Nestlé, Parmalat, Fleischamann Royal, Itambé, Danone, Elegê, Coopertiva Central/SP, Quaker, Batávia, Yakult, Vigor e Itasa – faturaram 6 bilhões de dólares. Somente as duas maiores redes de supermercados (Carrefour e Grupo Pão de Açúcar) faturaram 9 bilhões de dólares no mesmo período, ou seja, 50% mais do que o faturamento acumulado das doze empresas mencionadas. Se consideramos as doze maiores redes de supermercados, o faturamento alcança 16 bilhões de dólares contra os 6 bilhões do mesmo número de empresas de laticínios (Quadro X).

Quadro X

Brasil – Faturamento das maiores empresas com atuação em laticínios e dos maiores supermercados - 2000

Considerando a importância dos supermercados na distribuição de alimentos e, principalmente, de produtos lácteos, pode-se concluir de onde vem as imperfeições do mercado. Nesse cenário, a exemplo do que ocorre com outros fornecedores dos supermercados, o poder de barganha não está certamente com as empresas de laticínios, mas sim nas mãos do varejo. Por mais importante que o leite longa vida seja para o mercado de leite brasileiro, o produto não consegue mudar a realidade da concentração do varejo em face do grande número de empresas fornecedoras.

Apesar das dificuldades decorrentes dessa concentração, diversas são as razões que indicam que o leite longa vida continuará exercendo seu importante papel no desenvolvimento do mercado brasileiro de leite. Em primeiro lugar, pela sua capacidade de absorção de grandes volumes de matéria-prima, o leite longa vida pode continuar atendendo ao crescimento da produção interna, o que é fundamental para o aumento da oferta de leite pelos produtores. Em segundo lugar, porque sua tecnologia viabiliza uma diversificação cada vez maior da oferta de leite, num mercado constituído por consumidores cada vez mais seduzidos por novas alternativas de consumo, tais como sucos, bebidas isotônicas, chás, produtos à base de soja e outros que certamente surgirão. Em terceiro, pela sua facilidade de transporte e estocagem sem necessidade de refrigeração, especialmente em tempos de restrição da oferta de energia elétrica. Em quarto, pela existência, em quase todas as regiões, de capacidade instalada capaz de absorver prontamente o aumento da produção de leite e o crescimento do mercado.

Entretanto, a intensidade e a velocidade da contribuição do leite longa vida no desenvolvimento do mercado lácteo brasileiro dependerá de mudanças no cenário macroeconômico. Sem desenvolvimento econômico sustentável e sem distribuição de renda, que possibilitem à população maior acesso aos produtos alimentícios, dentre os quais o leite e seus derivados, o crescimento de mercado será cada vez mais limitado. O desafio não só do segmento de leite longa vida, mas de todo setor de laticínios, é lutar pelas mudanças que levem efetivamente a criação de um amplo mercado interno. Mais do que isso, que sejam definidas políticas públicas, possibilitando a inserção do país no mercado internacional, uma vez que, havendo continuidade política e estabilidade de preços, produtores de leite e empresas de laticínios estarão em condições de produzir excedentes exportáveis, com qualidade e a preços competitivos.

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  1. Economista, Diretor Presidente da Associação Brasileira de Leite Longa Vida e Sócio-Diretor da BrainStock - Consultoria Empresarial S/C Ltda.
  2. Médica Veterinária, Gerente do Serviço de Informação ao Consumidor da Associação Brasileira de Leite Longa Vida

 

Referências Bibliográficas:

  1. ALVES, Daniela R. The Role of UHT milk in the Growth of the Brazilian Milk Market. The Australian Journal of Dairy Technology, Australia, vol. 56, n.2, p.116, july 2001.
  2. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LEITE LONGA VIDA Relatório Anual 2000, São Paulo, 2000, 33p.
  3. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LEITE LONGA VIDA Compilação Estatística ABLV, São Paulo, 2001, vol.1.
  4. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS PRODUTORES DE LEITE B Leite Longa Vida Aspectos Técnicos e Econômicos, São Paulo, abril 1992.
  5. BANCO CENTRAL DO BRASIL Boletim do Banco Central do Brasil – Relatório, diversos anos.
  6. MEIRELES, Almir. J. A DesRazão Laticinista A Indústria de Laticínios no Último Quartel do Século XX, São Paulo: Cultura Editores Associados , 1986, 268p.
  7. MEIRELES, Almir. J. Leite Paulista História da Formação de Um Sistema Cooperativista no Brasil, São Paulo: HRM Editores Associados, 1983, 246p.
  8. MEIRELES, Almir. J. Planejamento Qualidade e Globalização na Indústria de Laticínios 1997-2000 Um olhar incompleto, São Paulo: Cultura Editores Associados, 2000, 128p.
  9. PRIMO, Wilson M. Restrições ao Desenvolvimento da Indústria Brasileira de Laticínio. In: VILELA, D.; BRESSAN, M.; CUNHA, A.S. (ed.) Restrições Técnicas, Econômicas e Institucionais ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva do Leite no Brasil, Brasília: MCT/CNPq/PADCT, Juiz de Fora: EMBRAPA-CNPGL, 1999, 71-127p.
  10. Revista Exame Melhores e Maiores, São Paulo: Ed. Abril, julho 2001.
  11. SOUZA, Francisco A. S. O Estado e o Cartel de Leite no Brasil. 1ͺ ed. Brasília: Horizonte Ed. Ltda, 1981. 130 p.

 

 

 

 

 

Ensaio publicado na Revista BALDE BRANCO, edição de outubro 2001. Será um dos capítulos do livro O AGRONEGÓCIO DO LEITE NO BRASIL, editado pela EMPRAPA Gado de Leite.