La Serenísima se reinventa para crescer

Daniel Rittner | De General Rodríguez (Argentina)

 

Nenhuma marca é tão querida pelos argentinos quanto La Serenísima, a maior indústria de leite e derivados do país vizinho, criada por um casal de imigrantes italianos que fazia mozarela e ricota nos fundos de casa.

Mesmo assim, a história empresarial da família Mastellone parecia estar com os dias contados, em meados do ano passado. A empresa vinha do maior prejuízo em oito décadas de existência, acumulava dívidas de US$ 230 milhões e tudo indicava que sua venda à francesa Danone era a única saída para não fechar as portas. Em meio à comoção nacional pela crise da companhia, o ex-presidente Néstor Kirchner chegou a avisar publicamente que os controladores "podiam contar com apoio do governo".

Sem ajuda oficial e contrariando as expectativas do mercado, às vésperas de completar 80 anos e na presidência da Serenísima desde 1952, Pascual Mastellone, o mais velho dos seis filhos do casal de imigrantes, recusou as propostas de desfazer-se do controle acionário e assumiu o desafio de recuperar a empresa. À moda antiga, conversou com os credores e empenhou sua palavra. Acabou fechando um acordo que adiava o pagamento de 98% da dívida para o triênio de 2016 a 2018.

 

Apostou em uma nova linha de produtos com maior valor agregado, que inclui queijos especiais e leites flavorizados, para aumentar a rentabilidade. E se dedica a um plano de acelerar a internacionalização da companhia, com foco no Brasil. Aos funcionários, comunicou que decidira profissionalizar a gestão da Serenísima, mas gradualmente e seguindo no comando - por mais nove anos! "Se Deus me der saúde e me acompanhar, estarei à frente da empresa até 2018", disse Don Pascual, como é chamado por todos, ao Valor.

"Muitos me perguntaram por que eu havia decidido continuar. A verdade é que, acima de todas as coisas e ainda nos momentos mais complicados, prevaleceu o coração. Não me imagino fazendo outra coisa", completou o empresário, que assumiu a La Serenísima aos 21 anos, após a morte prematura do pai.

Com a reestruturação financeira e um reposicionamento no mercado, o resultado líquido negativo de 110 milhões de pesos no primeiro semestre de 2008 deu lugar a um lucro de 80 milhões de pesos (cerca de R$ 40 milhões) no mesmo período de 2010. A empresa deverá alcançar um faturamento de 4,2 bilhões de pesos (US$ 1,05 bilhão) neste ano - 30% a mais do que o registrado no exercício anterior.

Na Argentina, a La Serenísima processa e vende 70% de todo o leite consumido no país. São 5,5 milhões de litros por dia que entram em suas sete unidades industriais. Mas a rentabilidade é tradicionalmente baixa e os custos têm subido em ritmo bastante veloz. Em um ano, o preço do leite bruto passou de 0,80 peso para 1,40 peso por litro. "E 55% do nosso custo de produção é matéria-prima", diz Ernesto Arenaza, diretor comercial da empresa e braço-direito de Don Pascual.

Para driblar as margens baixas, a nova aposta é em leites combinados com frutas, achocolatados e, principalmente, queijos - a média de lançamentos tem sido de pelo menos um por mês. "O segmento em que mais podemos crescer é o de queijos", acrescenta Arenaza. Desde junho, as vendas aumentaram 45% em volume. A estratégia é ganhar participação relevante em um segmento disputado hoje por mais de 870 produtores.

Para explorar o mercado de iogurtes e sobremesas, La Serenísima encontra um obstáculo: em 1996, fechou uma aliança para produzir, comercializar e distribuir produtos da Danone. Tem exclusividade, mas não pode competir no mesmo segmento. Qualquer consumidor brasileiro levaria um susto ao percorrer os supermercados argentinos: linhas como Activia, Danoninho e Danette saem com rótulo da Serenísima. As duas companhias concordaram em que era a marca de maior impacto.

No levantamento anual que a consultoria I+E faz para o jornal "Clarín", La Serenísima ganhou pela segunda vez consecutiva o prêmio de marca mais admirada pelos argentinos. Arenaza acredita ter a explicação: "A qualidade dos nossos produtos não é um clichê e temos mais de 25 mil controles diários. Sempre dissemos a verdade, nunca ocultando problemas, sejam financeiros ou de abastecimento. Temos 80 mil pontos de venda, o que constrói uma imagem sólida. E, nos momentos mais complicados, o que ajudou a segurar a marca foi a Danone".

Em um sábado no início de agosto, Don Pascual comemorou seu aniversário de 80 anos com 4,4 mil convidados. Na fábrica em General Rodríguez, um pequeno município nas imediações de Buenos Aires, só havia familiares, funcionários e fornecedores. O único político era o prefeito da cidade - mais ninguém. Na segunda-feira, ele já voltava à rotina habitual: acordar às 5h30, fazer uma caminhada, ler os jornais, tomar café e seguir para o escritório. Espera ser assim até o fim de 2018. (Valor Econômico)

 

De volta ao azul, empresa argentina planeja avançar no exterior e até aquisição no Brasil

|De General Rodríguez

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De volta ao azul, a La Serenísima definiu sua expansão no exterior como fundamental e colocou o Brasil no topo das prioridades. A estratégia de internacionalização também inclui a Colômbia como parte da primeira etapa. "É uma forma de dar mais estabilidade às nossas operações e ficar menos dependente do mercado argentino. Se um país não estiver bem, teremos alguns ovos em outras cestas", afirma o diretor comercial da empresa, Ernesto Arenaza.

De acordo com o executivo, é mais provável que a La Serenísima dispense um sócio local e tenha operação 100% própria, mas não necessariamente com a marca usada na Argentina - pelo menos no início. Mas os irmãos Mastellone não estão em busca exatamente de uma marca no Brasil. "O que você compra, no caso do leite, é uma rede de abastecimento", diz Arenaza.

Para isso, a empresa considera que pode ser preciso desembolsar até US$ 50 milhões - o preço estimado de uma rede sólida de produtores de leite, segundo o diretor. Ele acredita que a grande oportunidade do mercado brasileiro é o segmento de iogurtes e sobremesas. Arenaza sublinha que o consumo médio de leite e derivados, no Brasil, ainda ronda 140 litros por habitante/ano. Na Argentina, fica perto de 210 litros. No entanto, a produção brasileira de leite praticamente dobrou desde o fim da década passada, enquanto a argentina manteve-se estagnada.

Curiosamente, a aposta no Brasil está na origem da última crise vivida pela companhia. Na segunda metade dos anos 90, vendo a explosão de consumo causada pelo Plano Real, a La Serenísima investiu US$ 800 milhões em maquinário para expandir suas exportações. Também comprou a Leitesol, com fábrica envasadora em Bragança Paulista, em 1996. A linha de produtos no Brasil ainda é pequena, na comparação com a oferta da Serenísima na Argentina, e gera faturamento anual de US$ 85 milhões, diz Arenaza.

Mas em 1999, com a desvalorização do real, "tornou-se inviável" importar leite em pó da Argentina para abastecer o mercado brasileiro, segundo o executivo. Até 2002, quando acabou a conversibilidade entre peso e dólar, o prejuízo foi grande.

Se o fim da paridade cambial melhorou a competitividade do país vizinho, também triplicou, de uma hora para outra, a dívida em dólares das empresas. Foi o que também afetou os irmãos Mastellone, até culminar na crise financeira que quase levou à quebra da empresa, no ano passado.

 

Fábrica artesanal de queijos ganhou nome de esquadrilha da Primeira Guerra Mundial

De General Rodríguez

Em agosto de 1918, uma esquadrilha italiana comandada pelo poeta e aviador Gabrielle D'Anunzio sobrevoou o Império Austro-Húngaro com a missão de bombardear Viena. A Primeira Guerra Mundial já caminhava para o fim. D'Anunzio e os oito pilotos que o acompanhavam, em vez de bombas, despejaram sobre a capital austríaca milhares de panfletos clamando paz.

Antonino Mastellone, um jovem de 18 anos que aprendia técnicas para a elaboração de queijos num lugarejo perto de Nápoles, prometeu homenagear "La Sereníssima", como era batizada a esquadrilha. Em 1925, tomou um navio para a Argentina e começou a trabalhar em um frigorífico instalado na Província de Buenos Aires por um antigo vizinho italiano.

O conterrâneo sabia dos dotes gastronômicos de Antonino e lhe emprestou uma casa no município de General Rodríguez, a uma hora do centro portenho, onde ele poderia dedicar-se à produção artesanal de queijos com sua esposa. Surgia assim La Serenísima, sem o "s" original, reincorporado no mercado brasileiro.

Antonino comprou o primeiro caminhão em 1935 e pôde acompanhar o início da trajetória de crescimento da empresa, mas morreu em 1952. Como o mais velho de quatro irmãos homens, Don Pascual ficou à frente da Serenísima, como reza a tradição italiana. Os outros três irmãos - um já faleceu - também participaram da gestão, enquanto as duas irmãs mantêm-se relativamente afastadas do negócio, embora sejam sócias.

O grande salto da companhia, no entanto, foi na década de 1960. A produção aumentou por 12 em quatro anos. Foi resultado de um decreto em Buenos Aires que impediu a comercialização de leite bruto. Como a La Serenísima havia sido pioneira na Argentina e tinha a maior capacidade de pasteurização e resfriamento do leite, foi a que se beneficiou mais. Para atender o crescimento explosivo da demanda, teve que fornecer em embalagens de até 50 litros.

Hoje a empresa é um gigante cuja unidade central ocupa 14 hectares em General Rodríguez, além de ter outras seis plantas de processamento. São 3.850 empregados e cerca de 25 mil trabalhadores indiretos. O principal ativo, porém, ainda é considerado sua marca. A abertura do capital, segundo o diretor Ernesto Arenaza, um dos funcionários de maior confiança de Don Pascual, é um processo inevitável - mas ainda sem data. (DR)

 

Fonte: Valor Econômico – Edição: 20/09/2010